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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A volta dos Mercados Públicos (parte II) por VicentePimentero

Minha nova rotina de cozinheiro se deu nesta sexta passada, na banca 4 do Mercado Público de Pelotas às nove da manhã. No dia anterior aproveitei a feira orgânica que se acampa ali no largo do prédio histórico e me muni de hortaliças, legumes, vegetais e ervas aromáticas. Dei uma volta olímpica pelos corredores e as quatro torres e pude garantir o peixe do ceviche, um belo atum, firme e quase rosa, as azeitonas gregas e alguns insumos integrais como farinhas e derivados. Observei também que tem vinho, temperos, funghis, salames, queijos, castanhas, cachaças, conservas, secos e molhados em geral. Posso cortar o cabelo também numa dessas pressas cotidianas. 

E enquanto isso faço uma fézinha com o bicheiro. Enquanto o pessoal do Bra Pel fala de futebol me informo sobre o vai e vem da dupla rival. Tenho à la minuta do lado esquerdo e do lado direito do meu local, ali posso sentar e observar as pernas frenéticas da população que vai pra lá e pra cá, costurando o centro da Princesa do Sul. Aquele entorno te faz pensar em outras épocas e na imponente lembrança desta cidade que escreve junto às primeiras cidades do Brasil a história do país. Foi aqui que se desenvolveu grande parte da economia do extremo sul e que naquele então fazia frente com as grandes economias do centro do país, e aí vem aquela história toda do charque e o gado xucro. Mas ainda contemplo essas pedras velhas e sorvo um café, ali do meu amigo castelhano, dividindo o frio confuso que avisa a chegada da primavera. Faço fogo de lenha, tempero as carnes e enrolo os vegetais marinados em alumínio. Divido um chimarrão com algum vizinho ou passante enquanto o Tato, meu brother, abre os sobrelones e ali começa a se armar todo o clima folclórico do Mercado.

Fico ansioso por ver o Mercado de Jaguarão prontinho e atuante. Será ali que me acomodarei para tomar uma cervejinha à sombra das figueiras. Volto mais rápido que um Rainha até Pelotas, o que não é difícil e esquento uma panela de barro a lume forte, ali mexo o entrevero de carnes com fundo de legumes e se alguém aparecer com fome de anteontem posso surpreender além do cardápio, que já é um mimo. Tudo ali é possível, os pratos devem ser ecléticos e sustentar qualquer bolso. O tempero tem que ser caseiro, pois ali, naquele sítio nostálgico, um caldo ou um arroz, deverão lembrar mamãe ou vovó, isso nos dará uma pausa no tempo, apara contemplar nossa própria existência e imaginar um horizonte indiferente às selvas de pedras da civilização descivilizada. Ponho a tocar meu rádio AM, o mesmo que me acompanha em todas as cozinhas, desde as épocas do saudoso Fondo Blanco até o fogão de quatro bocas do meu apê. Ali o som se propaga agudamente, como um filme em preto e branco, como o chiado do vinil, com a melancolia dos Mercados Públicos.

E para terminar deixo a receita do Carusso que faço para acompanhar o Entrecot à punta de llamas, o roubo da receita do capelletti e tento deixar todo o amor de mãe impregnado nos aromas do creme amadeirado, a todos um bom apetite, e nunca esqueça, antes de começar a comer, brinde, agradeça e saboreie como se fosse sua última refeição, afinal, vivemos todas as vidas nesta mesma vida.

Carusso à moda Pimentero

Numa frigideira véia e bem aquecida derreta manteiga e azeite de oliva, em seguida junte fatias quase transparentes de cebola e champignons tipo Paris, de preferência in natura. Mexa devagar e assim que dourar tempere com pimenta do reino preta moída na hora e uma pisca diminuta de sal. Cubra com molho de soja reduzido em 50% de sódio ou light, e retire do fogo, sempre mexendo. Logo acrescente queijo parmesão ralado na hora e uns duzentos gramas de duas natas diferentes, uma mais líquida e outra mais cremosa. Volte ao fogo lento mexendo até misturar tudo, desligue e jogue em cima da carne, da massa, ou de uma cumbuca de vegetais salteados.

Edição de 09/09/2015 Ano VI nº 229
 
 
 
 

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A cozinha essencial por vicentepimentero

Uma cozinha essencial não se faz de um dia pro outro, pois não bastaria você construir um espaço apenas, seja doméstico ou comercial, muni-lo de apetrechos, maquinarias e insumos, e até um bom cozinheiro, e representar o que uma cozinha sovada pelo tempo significa. 

Uma cozinha essencial se constrói aos poucos, nas andanças de lumes e temperaturas, no cheiro das estações, e na fusão e preparos de alimentos elaborados ali ou trazidos de outras receitas. A cozinha essencial é aquela que coleciona panelas, que pendura frios, que seca iguarias, que cura feitiços à base do tempo. O tempo, o segredo infalível das cozinhas essenciais, o que curte, o que dora, o que desperta sabores e aromas genuínos daquela espera, daquele ciclo. Numa cozinha essencial estamos o tempo todo transformando, marinando, congelando, descongelando, aproveitando cada teor, cada prova, cada resto, cada sobra, cada milímetro. Para o mundo dos frutos, frutas, vegetais, legumes, hortaliças e tudo que vem da terra, é sempre fundamental respeitar a natureza das estações. 

Saudável e economicamente falando, preferir esses alimentos geram uma cadeia produtiva e necessária criando assim um loooping na vida e na cozinha de qualquer gourmet ou bon vivant. Os talos, as folhas e os brotos utilizam-se para sopas, bases, os chamados fundos, caldos. Se faz fundamental comprar quantidades e separá-las em congelados, em kits de sopas, com alimentos previamente descascados e ou lavados, estar sempre pronto para as visitas esperadas ou inesperadas é uma das artes do cozinheiro essencial. Aquele que se importa com agradar a todos, com generosidade e qualidade, isso faz de um cozinheiro essencial trazer à tona sua malícia e picardia de apaixonar qualquer paladar, qualquer estômago, acalentar no abraço dos sabores qualquer corpo de alma anêmica. 

Ainda estes vegetais devem se utilizar em escabeches, que nada mais são do que conservas à base de azeite e especiarias, para servir de acompanhamentos na hora de um petit comité, aperitivo, entrada, tapas, ou como queiram chamar o ritual das ante salas. Com as frutas a mesma coisa, ou as compotas, doces, marmeladas, que darão uma vida longa àquela fruta específica, perdurando o tino das estações num cardápio anual, destemperado de conceitos, mas harmonizado com a culinária de essências. A secagem é outra alternativa para preservar e dar durabilidade a qualquer iguaria, seja doce ou salgada transformar um insumo em bálsamo vivo é questão de praticidade e continuidade. É assim que nascem os tomates secos, foi dessa técnica que surgiu a carne de sol, e logo o charque. E por aí vão, os bacalhaus, os defumados, e os cozimentos crus, como o peixe no limão e o tomate em molho com a fermentação do açúcar. Ah cozinha infinita e essencial. 

As ervas aromáticas e seus mitos curandeiros que sugiro sempre comprá-los em dois exemplares de cada, na geladeira, guardadas bem sequinhas à vácuo ou num saco zip, podem durar várias semanas, com o outro exemplar, sugere-se pendurá-las de cabeça para baixo e deixá-las secar naturalmente, aos poucos teremos ervas secas que, armazenadas corretamente em potes fechados, podem durar meses, ou seja, o que nos impede de termos um mix de ervas secas? Já pensou? Orégano, Menta, Hortelã, Cardamomo, Manjericão, Manjerona, Tomilho, Alecrim, Salsa, Ciboulette, Estragão, e a página fica pequena para a variedade de especiarias que podemos incluir. 

Uma cozinha essencial é cheia dessas coisas, de sais, pimentas, temperos exóticos. Uma cozinha essencial está sempre com feijões na pressão e massas de pão caseiro fermentando. Uma cozinha essencial é uma cozinha de vó, e embora eu seja uma avó em corpo de homem, na minha cozinha jamais vai faltar o amor que ronda o melhor lugar da casa, onde as crianças pedem pipoca, as namoradas bolos de mel, os adultos carnes recheadas e temperadas, onde os mais velhos aperitivam um queijo e um salame da colônia e os lariquentos roubam uma colherada de doce de leite caseiro. Uma cozinha essencial é uma cozinha repleta de gente, de cheiros, de provas, de gula, de pecados. Onde o exótico é dar sentido ao paladar, logo à vida.

Edição de 06/05/2015 Ano VI nº 211
 
 
 
 

terça-feira, 31 de março de 2015

Frutos do mar ao vermelho vulcânico | por vicentepimentero

Hoje volto a falar de cozinha, mas que fique claro, que a escolha por frutos do mar, nada tem a ver com a síndrome da páscoa, onde as pessoas lembram-se de comer peixe. 

Esta receita carrego na alma como um acalanto de outono, no vento polar de Montevidéu, onde a estação é mais fria, cortante. Vi uma cozinheira chilena fazer esta receita há uns 20 anos atrás e nunca mais me esqueci. Hoje a repito incessantemente, e principalmente quando quero esquentar um coração. 

Primeiro escolho uma porção de frutos do mar, lulas, polvo, mexilhões, langostinos (lagostinhas), camarões, e um peixe firme. Fervo o polvo e as lulas enquanto descasco vegetais vermelhos, tomates gaúchos graúdos e bem maduros, pimentões, pimentas, e ajíes. Numa caçarola, a mais velha, de ferro ou barro, de preferência, frito a lume forte de um bom azeite de oliveira uma abundante quantidade de cebolas em tiras ultra finas, quase transparentes. Ao dourar jogo as lulas e o polvo previamente com seus tentáculos cortados e acrescento à poção folhas de louro, talos de aipo, e um macerado apurado de coentro em grãos e sal grosso. Assim que a mistura precisar hidratação lanço um jorro de vinho tinto encorpado, e deixo evaporar, logo continuo com os vegetais cozinhando até desmanchar os tomates. Enquanto o vulcão entra em erosão preparo um mix de folhas frescas na seguinte proporção, de mais para menos, coentro, salsa, manjerona e hortelã. Acrescento às borbulhas ferventes os langostinos, camarões, mexilhões e peixe, nessa ordem, desligo e retiro da boca quente do fogo. No prato, sirvo em cima de um arroz branco, de preferência carnealoni ou cateto, para que fique mais empapadinho, e junto às ervas frescas, ralo um parmesão na hora, e ainda um toque de noz moscada. Na mesa não pode faltar uma boa baguete artesanal e o mesmo vinho que cozinhamos, o que se sugere para harmonizar são vinhos estruturados como os cabernet e merlot.
Para entrada umas tapinhas de berinjela tostada com pasta suave de cottage.


Hasta la próxima comilança.

Edição de 25/03/2015  Ano IV nº 205