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quinta-feira, 13 de abril de 2017

MATARAM A NORMA!


Por Maria do Carmo Passos

Roque Santeiro foi a última novela que tive a oportunidade de assistir. Passou na TV Globo e achei fantástica. Na época, meus três filhos eram menores de idade e achei inadequado ficar assistindo novelas no horário das 20 horas. Esbocei, apoiada por meu esposo, um regulamento que passou a vigorar na casa. Juntamente com as crianças o televisor deveria ser desligado a partir das 20 horas. Todos concordaram, iriam acordar mais cedo no outro dia, descansados e como resultado renderiam mais na sala de aula. Eu, estava incluída nas regras, já que exercia o cargo de professora. 

Mas com o passar dos anos perdi o costume de assistir televisão à noite e muito menos novelas. 

Como resultado,  comecei a sentir-me deslocada em vários ambientes em que frequentava, desconhecia os personagens e tramas das novelas, assunto predileto nas rodas sociais, inclusive no horário de recreio dos professores, pois o assunto recorrente era a novela que estava sendo exibida em determinado canal. 

Entretanto, mesmo correndo o risco de me tornar fora de moda mantive minha decisão de permanecer sem as novidades da temporada, lançamento típico das novelas.

Meus filhos tornaram-se adultos, partiram e eu optei por assistir filmes, séries, documentários e tocar piano. Criei um mundo exclusivamente meu, no qual eu me bastava.

Certo dia, fui obrigada a cair na real. Minha residência estava passando por reformas e passei a dormir num quarto encostado à janela que dava para a rua. Acordei com a conversa dos funcionários que chegaram às 7 horas da matina. Comecei a ouvir do pessoal o assunto e resisti a acreditar na história que contavam entre eles. Falavam que Jaguarão não era mais uma cidade pacata e nem segura para se viver. Relatavam os fatos com precisão.  Entre eles assalto em joalheria, supermercados e rodoviária. 

Foi nesse exato momento que um deles disse: "mataram a Norma". Nesse instante ao ouvir a sentença, fiquei aterrada, acordei de verdade, corri por toda a casa e fui parar na cozinha, onde senti muita tristeza e vontade de chorar, pois nutro um grande carinho e admiração pela Norma. 

Estando eu nesse abalo,  bateu à porta um dos pedreiros. Viu a minha tristeza e ficou consternado. Foi então que perguntei:  João, assassinaram a Norma? Por isso estou triste. Sim mataram, mas foi ontem à noite a senhora não viu??? Respondi não,  nem sequer sai de casa. Foi quando, para meu alívio ele respondeu: foi a Norma da novela e ela merecia, a senhora não acha?

Recuperei o fôlego e respondi: graças a Deus não é a minha querida amiga Norma!

Hoje, agradeço ter vivenciado essa história e serviu para reafirmar minha convicção de que 
a mídia exerce com maestria o papel da manipulação.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Coluna Gente Fronteiriça - Amigo Fiel

Por Maria do Carmo Passos

Sou da mesma estirpe de Argos, fiel companheiro de Ulisses aguardando por sua volta ao lar no poema Odisseia de Homero . Apesar de ter ares de fidalgo, significando "filho de algo" todos me reconhecem pelo nome de Amigo. Sou querido e muito conceituado em nossa cidade. Modéstia à parte, todos me conhecem. De linhagem direta dos (RND) cujo significado é o seguinte: RACA NÃO DEFINIDA, tenho imenso orgulho de minha descendência canina.

Desconheço minha verdadeira origem; segundo o Carlinhos, artista e pintor profícuo de nossa cidade, fui adotado e criado por uma funcionária do Hotel Sinuelo, de jaguarão. O local pertencia à categoria dos estabelecimentos chics de nossa cidade, dando-me assim a oportunidade de obter informações de grande utilidade. Dentre elas, escapei do estigma de ser chamado de cão de rua. Outra façanha por exemplo e que merece grande destaque diz respeito aos animais de estimação. Não só cães. Nossas patinhas festivas representam um grande perigo para as malhas das meias das senhoras e para as calças masculinas. Portanto , toda aproximação tem de ser cautelosa e comedida.

Ao perder minha mãe adotiva, sai em busca de um local seguro em busca de proteção. Acostumado com determinado trajeto, circulava na maior parte do tempo entre a avenida 27 de janeiro e o Bar do Alemão . Ali encontrei abrigo junto ao proprietário, o Sr. Orlando e sua esposa, onde estabeleci moradia até os dias atuais. Floresceram entre nós apurados laços de amizade e aproximação.

No que se refere ao meu estado de saúde, raramente causo transtornos, conto com uma linhagem que tem me favorecido muito. Devo isso à grande imunidade inerente ao meu organismo, dificilmente sou vítima de qualquer doença, por mais grave que seja e que facilmente atinge diversos colegas pertencentes à minha categoria. Atualmente, junto aos meus pais, a quem dedico a maior parte do meu tempo, mantendo estreitos laços familiares, procuro manter com todos aqueles que nos cercam um grande , carinhoso e imenso afeto mesclados de amor e gratidão.

A relação com papai Orlando e mamãe Iracema, são mútuas e de extrema integridade. Todos sabem que o cão é o melhor e mais fiel amigo do ser humano.

Em raras ocasiões nos desentendemos, consigo acompanhá-los nas visitas, incluindo qualquer residência. Meu comportamento, modéstia à parte é de dar inveja a qualquer outro representante de minha raça. Costumo, durante a permanência na casa, quando acompanho meus amos, permanecer calado e nada escapa aos meus ouvidos apurados. Assemelho-me a um cão de porcelana, tamanha é minha discrição. Faço questão de não ser notado.

Hoje, felizmente encontrei meu verdadeiro lar, enquanto meus pais se distraem com alguma tarefa, aproveito a deixa e dou algumas escapadas, típicas de qualquer jovem de minha raça.

Entretanto, permaneço atento ao horário e raramente me atraso na chegada.

AMIGO, além de fidalgo jaguarense estou pronto a dar uma mão a todos aqueles que necessitam de minha ajuda. Afinal, sou um Cavalheiro e mesmo que não me peçam , lhes dou este conselho meu caro leitor ou leitora. Se estiver carente de companhia agradável olhe com carinho para os meus companheiros desafortunados que andam a esmo pelas ruas ou abrigados no Canil Municipal. Com certeza, em algum deles você poderá encontrar um fidalgo como eu.


Edição de 16/09/2015 Ano VI nº 230






sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Coluna Gente Fronteiriça - Memórias de um piano

Por Maria do Carmo Passos

Sou um piano. Fui idealizado e construído na Alemanha nos primórdios do século XX . Recebi o nome de MANEGOLD, em tradução livre para o português MEU OURO, o que repercutiu imensamente em minha existência já que, em tese, deveria ser entregue a alguém que realmente fizesse jus à minha reputação. Importado pelo Armazém de propriedade da família Cassal, situado na cidade portuária de Jaguarão, Brasil, Estado do RS, parti com a finalidade de encantar o lar dos Cassal, uma respeitada, conceituada e próspera família jaguarense dedicada ao comércio e adepta das artes, que abrigava em seu berço uma talentosa menina, chamada Clarita.

Fui cuidadosamente embalado, amarrado ao convés de um navio, garantindo assim que chegaria intacto ao meu destino. A viagem foi deveras assustadora, atravessando mares e oceanos, fazia mil conjecturas sobre meu futuro incerto e distante do continente europeu.

Aportando em jaguarão todo o meu espanto com o desconhecido desvaneceu-se. A cidade na qual chegara era encantadora, parecia tudo perfeito. A magia dominava o ambiente, o cais do porto estava repleto de gente linda e elegante, cenário perfeito para alguém como eu estabelecer moradia. Homens e mulheres vestidos ao estilo da época, portando chapéus, bengalas e esbanjando muito charme aguardavam a chegada de diversos produtos importados. Havia automobiles e carruagens circulando nas proximidades.

Porém, eu continuava apreensivo, chegando a pensar na hipótese de permanecer eternamente parado em uma residência fazendo parte da mobília de alguma casa servindo apenas de ornamento. O risco de ser apenas apreciado sem ser jamais tocado me aterrorizava.

Fiquei surpreso quando finalmente encontrei Clarita, uma bela e formosa jovem que prontamente me deu as boas vindas acariciando-me delicadamente. Juntos passamos a ter momentos muito especiais, enquanto Clarita explorava minhas teclas eu vibrava correspondendo ao seu entusiasmo e habilidade de pianista. Acabamos nos tornando quase inseparáveis, juntos tocávamos harmoniosamente em diversos saraus, frequentes na época, levando vida e alegria a muitos lares jaguarenses.

Entretanto, com o passar dos anos fui vendido para o sr. Ney Fernandes Passos, proprietário da Casa Aspiroz localizada em Rio Branco, Uruguay. A destinatária era sua filha, ainda menor, Maria do Carmo. Mais uma vez, fui obrigado a partir do país que já considerava minha pátria rumo a um país para mim desconhecido. Naturalmente sofri um grande desgaste emocional. Pensei que talvez pudesse ser vítima de uma garota mimada e consentida que me trataria como um objeto de seus caprichos.

Inicialmente passei a ter uma saudade, quase dolorida, de minha antiga proprietária. Entretanto, o tempo se encarrega de curar cicatrizes. Comecei timidamente a me entrosar com a pequena e voluntariosa menina. Percebi que seu objetivo era aprender a tocar piano às minhas custas e decidi colaborar. Juntos trabalhamos arduamente em busca da perfeição, meta costumeira para os adeptos da arte. Precisávamos treinar diariamente, sabíamos que a busca pela perfeição é um labirinto sem fim, quanto mais avançamos mais almejamos. Vivia a maior parte do meu tempo, sempre que fosse possível com minha dona, pois na sua concepção, tocar e ouvir música correspondia a rezar e encontrar-se no paraíso. Em inúmeras ocasiões a ouvi argumentando com seu pai, homem extremamente religioso, que ela não precisava ir à Missa Dominical porque já havia realizado suas preces quando tocava piano, tanto era sua convicção de que a música nos conecta com o universo e o divino.

Com o passar dos anos, estabelecemos entre nós um casamento, nossos destinos foram entrelaçados. Acabamos nos tornando amantes, companheiros, confidentes e até cúmplices em momentos difíceis que a vida nos apresenta. Num convívio de aproximadamente 60 anos, construímos lado a lado a carreira de seus filhos, em cujo êxito tive uma considerável parcela. Porém, como em qualquer relacionamento que se estende por tanto tempo, acabamos vítimas de um desgaste natural.

Ela já não acariciava meu teclado com o mesmo encanto e emoção de outrora, nos anos dourados de sua juventude e posterior maturidade. Concluída a tarefa de formar seus filhos e consequente partida dos mesmos, que tomaram rumos diferentes, Eu e minha Ama começamos a estreitar nossos laços prestando maior atenção em nós mesmos. O fim do outono e a proximidade derradeira do inverno, tornaram-se fatores decisivos em nossas existências. Seria ainda possível um futuro juntos? Quais as perspectivas? Chegara a hora de pensar e decidir sobre o que a vida nos aguardava e pensar na melhor estratégia para manter a nossa relação diante do que se apresentaria num futuro não muito distante. A perda seria inevitável.
Senti que, com sua partida, poderia ficar sozinho e parar em um asilo para móveis usados, sujeito a permanecer para sempre numa inércia mortal.

Em sonhos implorei para que ela me deixasse partir. Foi então que o destino conspirou a meu favor. Para nossa surpresa, apareceu na residência a visita inesperada de um jovem, com o nome de Octávio acompanhado de seu pai, Flávio. Logo em seguida tive a intuição de que o nome Octávio, era forte e combinava com Manegold. Apresentou-se como adepto de piano e minha companheira pediu para que ele me tocasse. Vibrei ao seu toque, entre uma nota e outra, renasci. Logo em seguida percebi que através de suas mãos alcançaria êxito. Além de intérprete, o jovem é compositor de originais e belas melodias. Seu estilo de natureza clássica, não impede que seu desempenho atravesse as fronteiras até chegar à música popular. Eu e minha companheira ficamos deslumbrados com o talento do rapaz e meu destino foi selado. Ela decidiu que eu deveria partir. Num sábado à tarde, fui transportado para a residência da família Machado, onde atualmente resido. 

Hoje posso dizer que me encontro feliz e faço jus a meu nome. Octávio é um rapaz alegre, criativo e muito carismático conseguindo facilmente penetrar no mundo enigmático da musica. Soma-se a isso o grande apoio que encontra em seus dedicados e orgulhosos pais Flávio e Andreia. Adepto das artes em geral, incluindo a literatura e pintura, um futuro de brilhante o aguarda.

Edição de 26/08/2015 Ano VI nº 227