Por
Wenceslau Gonçalves
Ainda é
madrugada na capital dos gaúchos. Reina um relativo silêncio no
centro histórico que habito e onde, agora, tento completar meu
período de repouso. De repente, assim como num passe de mágica, uma
parte da natureza se rebela com os monstros de ferro e cimento que
povoam esta nesga de terra cultuada por nossos ancestrais outrora
coberta apenas de densa vegetação nativa. Uma manifestação
melodiosa de um anônimo sabiá invade os apartamentos, atravessando
as vidraças, vindo de algum lugar lá embaixo, onde a vista não
alcança.
Na
cidade, a vida quotidiana recém começa a estabelecer suas primeiras
rotinas. Os cidadãos do bem recém despertaram; os do mal talvez
ainda nem tenham repousado. A vida urbana retorna ao mesmo ciclo que
encerrou ontem à noite.
Aqui, na
semi-escuridão quase silenciosa de meu quarto, sou capaz de voltar
no tempo revendo seus iguais que saltitavam libertos e felizes,
exibindo o garbo matreiro próprio da espécie nos caminhos forrados
de grama em busca de sua ração diária.
O que
ouço são apenas algumas notas musicais. Por enquanto há somente a
solidão da noite que se esvai em busca de sol. É apenas um pássaro
quase comum das poucas matas que ainda nos restam, mas reparem no
significado deste som para um urbano limitado em uma grande caixa de
concreto junto a tantas outras também encurraladas por impedimentos
que eles mesmos criaram para si. É apenas um sabiá que, sem se
personificar, apenas se anuncia pelo que tem de mais belo em seu
viver: seu canto mavioso e envolvente, consolador e plangente, que
acaba ferindo o sentimento de quem o escuta com atenção. Não há
como não reparar.
As
árvores são tão poucas por aqui, que me é mais fácil imaginá-lo
pousado em um contêiner ou talvez na carcaça de um automóvel
abandonado em uma viela qualquer das proximidades. Ou - quem sabe? –
em uma daquelas réstias de praça espremidas entre gigantes de
circulação que, de um momento para outro, fica lotada de pequenos
monstrinhos barulhentos e bebedores de combustível que emporcalham o
ar que precisamos para respirar.
A
natureza se rebela em parte porque estamos acabando com os poros da
terra. Acho que o homem também vai acabar se transformando também
em um ser sem poros, como tem desenvolvido seus agrupamentos urbanos.
Com uma alma sem poros, não há também sentimentos e passam a
ocorrer episódios não só como aqueles que resultaram na morte de
um menino – tão anunciada pela mídia - mas muitos mais que são
sacrificados diariamente pela cobiça e a vaidade de alguns poucos
que conseguem transformar o mundo em um lugar impróprio para a
beleza e a vida.
Voltando
ao sabiá depois das digressões. Encerro sem conseguir desfazer uma
dúvida atroz que permeia minha exposição. O sabiá do asfalto
saltitará livre em busca de uma companheira a quem dedicará seu
canto maravilhoso? Ou estará enjaulado, vítima de algum sádico que
se deleita vendo seu lamento através das grades? Confesso que não
sei. Vou continuar buscando localizar o meu despertador melódico.
Espero que a resposta seja a melhor para o caso. Afinal, o dia já
está quase começando novamente e, provavelmente, vou esquecer-me
dele, envolvido que vou estar com outras questões que podem não ter
a mesma importância do que valorizar pequenas coisas, como esta. Só
espero que ele, mesmo sem saber, volte a trazer-me mais alguns
momentos de encanto como os desta madrugada.
Edição de 23/09/2015 Ano VI nº 231