Sou um
piano. Fui idealizado e construído na Alemanha nos primórdios do
século XX . Recebi o nome de MANEGOLD, em tradução livre para o
português MEU OURO, o que repercutiu imensamente em minha existência
já que, em tese, deveria ser entregue a alguém que realmente
fizesse jus à minha reputação. Importado pelo Armazém de
propriedade da família Cassal, situado na cidade portuária de
Jaguarão, Brasil, Estado do RS, parti com a finalidade de encantar o
lar dos Cassal, uma respeitada, conceituada e próspera família
jaguarense dedicada ao comércio e adepta das artes, que abrigava em
seu berço uma talentosa menina, chamada Clarita.
Fui
cuidadosamente embalado, amarrado ao convés de um navio, garantindo
assim que chegaria intacto ao meu destino. A viagem foi deveras
assustadora, atravessando mares e oceanos, fazia mil conjecturas
sobre meu futuro incerto e distante do continente europeu.
Aportando
em jaguarão todo o meu espanto com o desconhecido desvaneceu-se. A
cidade na qual chegara era encantadora, parecia tudo perfeito. A
magia dominava o ambiente, o cais do porto estava repleto de gente
linda e elegante, cenário perfeito para alguém como eu estabelecer
moradia. Homens e mulheres vestidos ao estilo da época, portando
chapéus, bengalas e esbanjando muito charme aguardavam a chegada de
diversos produtos importados. Havia automobiles e carruagens
circulando nas proximidades.
Porém,
eu continuava apreensivo, chegando a pensar na hipótese de
permanecer eternamente parado em uma residência fazendo parte da
mobília de alguma casa servindo apenas de ornamento. O risco de ser
apenas apreciado sem ser jamais tocado me aterrorizava.
Fiquei
surpreso quando finalmente encontrei Clarita, uma bela e formosa
jovem que prontamente me deu as boas vindas acariciando-me
delicadamente. Juntos passamos a ter momentos muito especiais,
enquanto Clarita explorava minhas teclas eu vibrava correspondendo ao
seu entusiasmo e habilidade de pianista. Acabamos nos tornando quase
inseparáveis, juntos tocávamos harmoniosamente em diversos saraus,
frequentes na época, levando vida e alegria a muitos lares
jaguarenses.
Entretanto,
com o passar dos anos fui vendido para o sr. Ney Fernandes Passos,
proprietário da Casa Aspiroz localizada em Rio Branco, Uruguay. A
destinatária era sua filha, ainda menor, Maria do Carmo. Mais uma
vez, fui obrigado a partir do país que já considerava minha pátria
rumo a um país para mim desconhecido. Naturalmente sofri um grande
desgaste emocional. Pensei que talvez pudesse ser vítima de uma
garota mimada e consentida que me trataria como um objeto de seus
caprichos.
Inicialmente
passei a ter uma saudade, quase dolorida, de minha antiga
proprietária. Entretanto, o tempo se encarrega de curar cicatrizes.
Comecei timidamente a me entrosar com a pequena e voluntariosa
menina. Percebi que seu objetivo era aprender a tocar piano às
minhas custas e decidi colaborar. Juntos trabalhamos arduamente em
busca da perfeição, meta costumeira para os adeptos da arte.
Precisávamos treinar diariamente, sabíamos que a busca pela
perfeição é um labirinto sem fim, quanto mais avançamos mais
almejamos. Vivia a maior parte do meu tempo, sempre que fosse
possível com minha dona, pois na sua concepção, tocar e ouvir
música correspondia a rezar e encontrar-se no paraíso. Em inúmeras
ocasiões a ouvi argumentando com seu pai, homem extremamente
religioso, que ela não precisava ir à Missa Dominical porque já
havia realizado suas preces quando tocava piano, tanto era sua
convicção de que a música nos conecta com o universo e o divino.
Com o
passar dos anos, estabelecemos entre nós um casamento, nossos
destinos foram entrelaçados. Acabamos nos tornando amantes,
companheiros, confidentes e até cúmplices em momentos difíceis que
a vida nos apresenta. Num convívio de aproximadamente 60 anos,
construímos lado a lado a carreira de seus filhos, em cujo êxito
tive uma considerável parcela. Porém, como em qualquer
relacionamento que se estende por tanto tempo, acabamos vítimas de
um desgaste natural.
Ela já
não acariciava meu teclado com o mesmo encanto e emoção de
outrora, nos anos dourados de sua juventude e posterior maturidade.
Concluída a tarefa de formar seus filhos e consequente partida dos
mesmos, que tomaram rumos diferentes, Eu e minha Ama começamos a
estreitar nossos laços prestando maior atenção em nós mesmos. O
fim do outono e a proximidade derradeira do inverno, tornaram-se
fatores decisivos em nossas existências. Seria ainda possível um
futuro juntos? Quais as perspectivas? Chegara a hora de pensar e
decidir sobre o que a vida nos aguardava e pensar na melhor
estratégia para manter a nossa relação diante do que se
apresentaria num futuro não muito distante. A perda seria
inevitável.
Senti
que, com sua partida, poderia ficar sozinho e parar em um asilo para
móveis usados, sujeito a permanecer para sempre numa inércia
mortal.
Em sonhos
implorei para que ela me deixasse partir. Foi então que o destino
conspirou a meu favor. Para nossa surpresa, apareceu na residência a
visita inesperada de um jovem, com o nome de Octávio acompanhado de
seu pai, Flávio. Logo em seguida tive a intuição de que o nome
Octávio, era forte e combinava com Manegold. Apresentou-se como
adepto de piano e minha companheira pediu para que ele me tocasse.
Vibrei ao seu toque, entre uma nota e outra, renasci. Logo em seguida
percebi que através de suas mãos alcançaria êxito. Além de
intérprete, o jovem é compositor de originais e belas melodias.
Seu estilo de natureza clássica, não impede que seu desempenho
atravesse as fronteiras até chegar à música popular. Eu e minha
companheira ficamos deslumbrados com o talento do rapaz e meu destino
foi selado. Ela decidiu que eu deveria partir. Num sábado à tarde,
fui transportado para a residência da família Machado, onde
atualmente resido.
Hoje posso dizer que me encontro feliz e faço jus
a meu nome. Octávio é um rapaz alegre, criativo e muito carismático
conseguindo facilmente penetrar no mundo enigmático da musica.
Soma-se a isso o grande apoio que encontra em seus dedicados e
orgulhosos pais Flávio e Andreia. Adepto das artes em geral,
incluindo a literatura e pintura, um futuro de brilhante o aguarda.
Edição de 26/08/2015 Ano VI nº 227